A melodia da música country animada ia e vinha em meus ouvidos enquanto meu marido dirigia a 140 por hora pela rodovia. Mesmo que eu achasse a letra da música bastante machista, pelo eu sei, talvez esse realmente fosse o motivo para Deus fazer as garotas. Mas também fez para outro propósito, como evidenciava minha enorme barriga, pronta para explodir. Apenas alguns dias antes da data provável do meu parto.
Foi engraçado, no momento em que fui empurrada para dentro da sala de emergência, tive um momento de pânico. Eu não queria ter aquele bebê. Não que eu não quisesse ter um filho. Eu e meu marido estávamos tentando por dois anos quando finalmente fiquei grávida. Não era como se eu estivesse com medo da dor que sentiria nas horas seguintes; isso eu podia aguentar. É que finalmente eu tinha me acostumado a sensação de estar grávida. Havia algo intimamente lindo em crescer outro ser dentro de você. Agora que aquele humano estava (provavelmente) prestes a ser colocado em meus braços em menos de 24 horas, o terror tomou conta.
Mas então, algumas horas depois, eu estava segurando meu doce Nathan pela primeira vez, e meu coração estava tão cheio de alegria que achei que iria explodir. Tudo nele era perfeito: dos seus olhos azuis claro até seus dedinhos do pé que se retorciam nos seus primeiros choros. Meu menininho perfeito.
Joey e eu estávamos absortos em trazer nosso pequeno Nathan para casa pela primeira vez. Nós tínhamos nossa casa que não era mais que um pequeno chalé na fronteira da cidade, azul com acabamentos em branco. Eu sonhava acordada com os primeiros passos de de Nathan na calçada de cimento que levava até nossa casa. Joey balbuciava sobre ensiná-lo a nadar no pequeno riacho que ficava a alguns minutos do nosso quintal. Nós dois conversávamos sem parar sobre os futuros aniversários, amiguinhos que dormiriam em nossa casa, piqueniques e mais aventuras.
Pensando agora, posso afirmar que aquelas foram as melhores semanas da minha vida.
Não vou fingir que não fiquei estressada. Ter um bebê recém nascido é bem difícil. Joey e eu raramente conseguíamos ter uma boa noite de sono. Um de nós sempre estava fora da cama, embalando ou trocando as fraldas de Nathan. Se não os dois. Eu ficava muito apreensiva com as pequenas coisas. A testa de Nathan está muito quente? O seu choro está diferente do normal? Por que ele não tomou tanto leite quanto ontem?
Quando Joey voltou para o trabalho, as coisas foram piorando mais ainda. Comecei a pensar que eu era uma péssima mãe, que não conseguia cuidar do próprio filho. Sentia como se nada que fizesse por ele fosse certo. Toda vez que ele chorava, era como se estivesse me acusando de ser uma incompetente. Não havia nada no mundo que eu amasse mais que meu filho, e ele me odiava.
Nathan me odiava.
Foi por essa época - quando tinha mais ou menos quatro meses - que comecei ter os pesadelos estranhos.
Eu acordava no meio da noite para checar o berço de Nathan. Quando eu ia me aproximando da porta, havia uma luz vermelha vindo de dentro do seu quarto, acompanhado por um estalar baixo. Quando entrava as pressas, via seu berço em chamas. A pele dele estava esticada ao lado do berço, chamuscada e esfumaçando. De pé na frente do berço, havia uma criatura grotesca que parecia um inseto, com membros como de um louva-deus e um corpo preto e brilhante, antenas enormes e pinças pingando veneno. Aquela coisa nojenta olhava pra mim e, para meu completo horror, se arrastava para dentro da pele de Nathan. Uma vez dentro do meu filho, Nathan se virava pra mim, completamente normal, exceto por buracos negros onde os olhos deviam estar.
E ele vinha engatinhando no chão em minha direção feito uma aranha...
Nesse ponto eu sempre acordava encharcada de suor. Posso jurar por tudo que me é mais sagrado que toda vez que abria os olhos, tinha a sensação que aquele bicho preto havia acabado de passar pelo canto do meu olho. Eu sempre ia olhar Nathan, mas ele sempre estava são e salvo.
Logo, eu já quase não dormia. Entre os pesadelos e os choros noturnos de Nathan, eu só conseguia dormir uma ou duas horas por noite. Podia sentir minha energia vazando por entre meus dedos. Os abraços e carinhos amorosos de Joey durante a noite não me traziam alívio - se ele conseguisse ver a mãe terrível que eu era, me odiaria também. Uma boa mãe não poderia ter tais pesadelos com o próprio filho.
Eu era uma péssima mãe.
Seis meses. Os pesadelos se tornaram mais frequentes. Antes eu os tinha uma vez por semana, mais ou menos. Agora eram todas as noites.
Então, um dia, notei uma coisa.
Enquanto eu brincava com Nathan em meu colo, lágrimas em meus olhos por causa de suas risadinhas vazias, pensando o quão desapontado ele deveria estar com sua própria mãe, olhei no fundo de seus olhos e percebi: não havia nada lá.
Sempre acreditei que humanos tivessem alma. Quase podia ver a de Joey quando me olhava no olhos. Havia algo tão terrivelmente humano, terrivelmente lindo, terrivelmente vivo quando eu olhava para ele. Podia ver sua alma olhando para minha.
Mas Nathan? Os olhos de Nathan eram vazios.
Eu ficava encarando-o por muito tempo, mesmo quando ele começava a chorar de fome. Eu continuava a encarar, sem conseguir tirar meus olhos dos dele. Queria ver algo, qualquer coisa que indicasse que meu filho era humano, que estava vivo, um produto de Deus e de seus pais amorosos. Ao invés disso eu via... nada. O vazio.
Antes que eu pudesse perceber, as vezes eu já estava a mais de duas horas olhando nos olhos de Nathan. Ele havia sujado e estava chorando sem parar. Rapidamente troquei suas fraldas e o coloquei na cama, esquecendo completamente de que devia alimentá-lo. Andei para fora de seu quarto, entorpecida, ignorando seus choros.
Meu menininho perfeito não tinha alma.
Por alguns dias, meditei sobre o que faria a respeito, mesmo já sabendo o que devia ser feito. Os pesadelos começaram a fazer sentido. Aquela criatura do mal vestindo a pele do meu filho. Os olhos sem vida do meu filho. As coisa que eu via incessavelmente pelo canto do meu olho. Eu sabia que ele não era normal. Sabia que ele era mal.
Nathan era mal.
Então, em uma manhã, esperei até Joey ir para o trabalho e enchi a banheira. Não conseguiria fazer com uma faca. Mesmo que Nathan fosse mal, fosse ruim, ainda era o meu Nathan. E eu ainda era a mãe dele. A péssima mãe. Nós dois éramos ruins. Talvez eu também não tivesse alma. Talvez tivesse perdido a minha quando dei a luz. Talvez nós dois estivéssemos destinados ao inferno.
Então decidi que iriamos juntos.
Não demorou muito. Segurei Nathan de baixo d'água até que seus pequenos membros ficassem moles. Ele parecia uma borboleta, balançando-se em minhas mãos. Eventualmente ele parou e afundou para o fundo da banheira.
Meu coração se quebrou em pedaços quando peguei a faca da cozinha e rompi a artéria do meu braço. Também tentei abrir a do outro braço, mas como estava perdendo sangue muito rápido e não conseguia segurar a faca direito. Queria ter deixado uma carta para Joey, mas talvez fosse melhor assim. Ele saberia que eu era uma péssima mãe, mas não precisava saber que Nathan era ruim também.
Depois de alguns minutos eu apaguei.
***
Acordei na cama do hospital, meu braço esquerdo cheio de pontos e com minha pele mais branca do que o normal. Também me sentia fraca. Eu sobrevivi. Mas por quê?
Continuei com meus olhos fechados, ouvindo sussurros em minha volta. Tentei entender o que estavam dizendo.
"... um surto nervoso que levou a uma depressão pó-parto. É muito comum, mas esse tipo de reação..."
Minha mente começou a clarear, como se antes eu estivesse em um nevoeiro.
Acho que, no final, pessoas loucas são sortudas. Porque se você é louco, nunca sabe que é. E não importa o que essas pessoas fazem, não podem ser culpadas, podem? Porque em suas realidade, seja lá o que fizerem, tudo parece fazer sentido.
Mas naquele momento, tudo voltou para mim em uma nova perspectiva e comecei a ter noção do que tinha feito, do que realmente tinha feito. Alguns meses de estresse, algumas semanas de depressão pós-parto, e um momento de insanidade. Eu tinha afogado Nathan. Eu matei meu próprio filho. Eu o segurei de baixo da água por vontade própria e assisti ele enchendo seus pulmões de água.
Quando ouvi Joey e o médico saírem do quarto, consegui me desvencilhar das amarras que tinham colocado em meus pulsos. Não tinham apertado forte o suficiente, provavelmente porque acharam que eu não teria força o bastante.
Mas tenho um resquício de forças para esse último ato.
Então Joey, se você está lendo isso, sinto muito. Sinto muito pelo o que fiz. Não me perdoe, não seria certo. Por Nathan. Espero que eu sofra pelo pecado que cometi. Agora eu vou. Já abri a janela. Pelo menos esta vista linda será a última coisa que verei antes de ir para o inferno.
Adeus, Joey. Sinto muito.
08/04/2016 11:30 comentem minha volta hahaha